Inúmeras vezes, durante minha carreira de síndica profissional, me pego saindo do ar, me vendo totalmente fora da situação e me perguntando porque estou sendo tratada de forma tão rude.
As pessoas gritam, ofendem, não escutam. Por vezes nem permitem que você fale, apesar de ter sido você que marcou a reunião. A especialista é você, a representante hierárquica mais alta também é você, porém você escuta um grosseiro “ eu que pago seu salário e sua opinião não importa“. As pessoas fazem caretas, gesticulam, fazem gestos obscenos.
Seguramente temos a oportunidade de presenciar situações sem qualquer tipo de civilidade no exercício dessa profissão. No fundo, faz parte já que muitas vezes frustamos egos mimados e não psicanalisados. Bem, que seja isso, porém não é só isso que nos deparamos como síndicas. Nos vemos em situações muito piores onde a violência vem simplesmente pelo fato de você ser uma mulher.
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Umas semanas atrás fui apresentar um assunto em uma assembleia que especificamente fora desenvolvido por iniciativa do grupo de conselheiros. Na medida em que fui expondo o tema, e alguns na plateia não concordaram com as ideias ali contidas , comecei a ser interrompida na frente de todos sem que eu pudesse concluir um só raciocínio.
O ponto de vista que eu expunha não era algo pessoal meu. Mas algo que o grupo do conselho acreditava e queria ver aprovado. Porém, não sendo a ideia uma unanimidade, o grupo “pai da criança” pulou para atrás e começou a me tratar muito mal na frente todos.
A agressividade e a falta de educação nas interrupções foram de tal forma desproporcionais, ao ponto da poderosa esposa de um dos idealizadores, supostamente envergonhada pela minha exposição, chegar ao ponto de dizer “ essa mulher não pode ser levada a sério mesmo”.
Para piorar a situação desproporcionalmente desrespeitosa, um dos conselheiros esperou a assembleia acabar, e na maior falta de noção possível, me passou um sabão como se houvesse a possibilidade de um comportamento distorcido como o dele ser possível no século em que vivemos. Fiquei chocada, me limitei a dizer que nunca alguém tinha me falado algo dessa natureza, mas que eu refletiria para saber se poderia aproveitar algum ponto dessa nossa conversa particular. Pedi licença e me retirei.
A seguir liguei para o técnico que havia auxiliado na elaboração do projeto e contei os fatos. Sabe o que ele me disse? Lígia só fizeram isso pois você é uma mulher. Se fosse eu que tivesse apresentado a ideia arrojada, talvez ela não fosse aprovada mesmo , mas seguramente ninguém teria me humilhado como fizeram com você.
No momento que ouvi essa interpretação dos fatos realmente tudo fez sentido. E sabe o que era pior? Foi perceber que a mais preconceituosa foi exatamente aquela senhora que se pronunciou sobre a impossibilidade de alguém como eu ser levado a sério. Senhora essa aliás que ocupa um cargo de liderança em uma grande empresa em nosso país, e que se revelou a mais machista do grupo. Uma vergonha.
Episódios como esse ocorrem todos os dias. Quantas vezes num grupo de homens minha voz parece que não é ouvida. Minhas ideias e argumentos quando são os mais adequados são atribuídos a outrem. Eu não consigo falar, expor fatos e ideias sem deixar de ser interrompida. Quando finalmente me deixo vencer pela irritação inevitável numa situação como essa sou taxada de histérica, não profissional.
Recentemente aprendi uma expressão em inglês a qual descreve bem esse tipo de situação que muitas de nós vivenciamos: manterrupting . O termo exatamente descreve situações onde um homem interrompe a fala de uma mulher antes que ela termine o que está falando. Antes que exponha suas ideias. Ele descreve exatamente situações de discriminação de gênero que ocorrem todos os dias e que nada mais são do que formas de abuso emocional, um tipo de violência psicológica que muitas mulheres são vítimas.
O recado que deixo aqui para minhas colegas de profissão é o seguinte: não se calem. Espere os donos da razão falarem e em tom o mais sereno possível arremate com algo assim: o senhor terminou? Agradeço sua contribuição para o tema. De toda forma, agora que tenho a oportunidade, vou explicar o que de fato ocorre. Peço que o senhor se contenha e não me interrompa mais uma vez por favor para que essa conversa seja produtiva. Afinal, todos nós somos pessoas ocupadas e comprometidas. Se ele insistir, não desista e repita: mas o senhor não vai me deixar explicar? Creio que não chegaremos a lugar algum enquanto o senhor não me deixar concluir.
A maioria das vezes o homem irritado grita, esmurra a mesa ou sai da sala. Melhor assim. Ele que vá trabalhar esse comportamento em um divã e não numa reunião de trabalho.
Fica também minha esperança de que ele não desconte em mais ninguém tamanha frustração. A de não ter conseguido sabotar a atuação de alguém que seguramente ele enxerga como uma ameaça: uma mulher que, como qualquer outro ser humano, pensa.
E termino mais esse texto repetindo que acredito que o coletivo começa no microcosmo de nossas relações mais próximas, as quais se saudáveis, podem ultrapassar muros e ajudar, tijolinho por tijolinho, quadra por quadra, na construção de uma sociedade mais igualitária e gentil, a qual seguramente todos nós precisamos.
Lígia Ramos é síndica profissional, arquiteta e bióloga